quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Boaventura: "O impacto do movimento do FSM foi muito superior ao que se imagina"



Um dos grandes pensadores da atualidade, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos concedeu entrevista exclusiva ao Jornal João de Barro. O PDF do jornal estará disponivel nos próximos dias no site da APCEF/RS. A entrevista é longa mas nem cogitamos em não colocá-la na íntegra. Boaventura fala da necessidade de o "espírito de Porto Alegre" voltar a irradiar para o mundo, faz balanço dos dez anos do FSM, analisa a política atual na América Latina... Bem, boa leitura!


João de Barro: Para o senhor, qual verdadeiro significado do Fórum Social Mundial?

Boaventura de Sousa Santos: Os dois antecedentes próximos do FSM foram o levantamento Zapatista, em Chiapas, em 1º de janeiro de 1994, e os protestos de Seattle contra a Organização Mundial de Comércio (OMC) em 30 de novembro de 1999. Depois de um período brevíssimo de luta armada, o Exército Zapatista de Libertação Nacional passou a advogar formas de resistência transnacional ao neoliberalismo e de luta também transnacional por uma sociedade mais justa, recorrendo de modo muito inovador às novas tecnologias de informação. Seatlle foi um momento muito importante para a criação da consciênciade que era possível organizar globalmente a resistência ao capitalismo, usando algumas das armas (tecnologias de informação e de comunicação) que tinham estado na origem da fase mais recente do capitalismo global, a que chamamos neoliberalismo. Tornou-se assim possívelimaginar uma globalização alternativa, de orientação anti ou pós-capitalista, construída a partir dos movimentos e organizações da sociedade civil. A partir de Chiapas e de Seattle, o movimento global contra o neoliberalismo adquiriu um novo patamar de consciência coletiva com o primeiro Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em janeiro de 2001. É um movimento de tipo novo que simbolicamente marca uma ruptura com as formas de organização das classes populares vigentes durante o século XX. É um movimento
muito heterogêneo em termos de base social em que, ao contrário do que se pode pensar, dominam organizações de trabalhadores, mas que não se apresentam como tal. Apresentam-se como camponeses, desempregados, indígenas, afrodescendentes, mulheres, moradores de favelas, ativistas de direitos humanos, ambientalistas, etc. O seu lema – um outro mundo é possível - revela a mesma heterogeneidade e inclusividade, o que se foi traduzindo em capacidade para articular diferentes agendas de transformação social, umas mais radicais que outras, umas mais culturais, outras mais econômicas, umas mais orientadas para a transformação do Estado, outras, para a transformação da sociedade.

JB: Quais as experiências mais importantes que o senhor viveu nestas edições do FSM?

BSS: Foram muitas e muito emocionantes. Lembro três. A primeira foi ver como o coração e a razão progressistas de Porto Alegre - levadas ao seu ponto mais alto pelas notáveis gestões do PT que eu acompanhara durante a década de 1990 - se abriam ao mundo e faziam da cidade o berço global da esperança e da luta por um mundo melhor. A segunda foi a impressionante presença de muitos milhares de dalits no FSM de Mumbai e a sua espetacular capacidade para ultrapassar a barreira da língua e nos transformar a todos em seus companheiros de luta pela igualdade e pela dignidade. A terceira foi viver intensamente o FSM de Nairobi de 2006 e o modo como os companheiros africanos venceram o preconceito (infelizmente presente dentro dos próprios órgãos do FSM) de que os africanos seriam incapazes de organizar um evento da envergadura do FSM.

JB: Qual o balanço que o senhor faz das nove edições do FSM ?

BSS: O impacto do movimento do FSM ao longo desta década foi muito superior ao que se imagina. Dou apenas alguns exemplos. A ascensão ao poder dos presidentes progressistas da América Latina não se pode entender sem o fermento de consciência continental por parte dos movimentos sociais gerado no FSM ou potenciado por ele. O bispo Fernando Lugo, hoje presidente do Paraguai, veio ao primeiro FSM de automóvel por não ter dinheiro para pagar a viagem de avião. A luta travada com êxito contra a ALCA e os tratados de livre-comércio foi gerada no FSM. Foi em função da mobilização do FSM que o Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça) mudou de retórica e de preocupações políticas (a pobreza, a importância das organizações não governamentais e dos movimentos sociais). Foi também sob a pressão das organizações do FSM especializadas na luta contra a dívida externa dos países empobrecidos pelo neoliberalismo que levou o Banco Mundial a aceitar a possibilidade de perdão dessas dívidas. O processo do FSM deu visibilidade às lutas dos povos indígenas e fortaleceu-lhes a dimensão continental e global das suas estratégias. Deu, igualmente, visibilidade às lutas das castas inferiores da Índia (os dalits), particularmente a partir do FSM realizado em Mumbai em 2005. Acima de tudo, o FSM deu credibilidade à ideia de que a democracia pode ser apropriada pelas classes populares e que os seus movimentos e organizações são tão legítimos quanto os partidos na luta pelo aprofundamento da democracia.

JB: Qual a importância das decisões do FSM para os países emergentes?

BSS: Foi no primeiro Fórum que se discutiu a importância de os países de desenvolvimento intermediário e com grandes populações - como o Brasil, a Índia, a África do Sul - se unirem como condição para que as regras de jogo do capitalismo mundial fossem alteradas. Um dos participantes nas discussões viria a ser logo depois o articulador da política externa brasileira. E os BRIC e o G-20 aí estão. O FSM teve uma importância decisiva em denunciar a hipocrisia e a injustiça da ortodoxia financeira e econômica do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial de Comércio, abrindo espaço político para comportamentos heterodoxos de que se beneficiaram, sobretudo, os países ditos emergentes.


JB: O FSM conseguiu tornar-se um contraponto ao Fórum Econômico Mundial
de Davos?

BSS: Depende do que se entender, por contraponto. Se por contraponto se entende uma presença mediática de nível equivalente ao do FEM e com orientação política oposta, o FSM não conseguiu ser contraponto nem era de esperar que o conseguisse. No início, o FSM foi uma novidade total e por isso atraiu a atenção da grande mídia. Depois o interesse midiático desvaneceu-se e em boa parte por isso foi-se criando a ideia de que o FSM estava perdendo ritmo e capacidade de atração. Se por contraponto se entende a criação de um pensamento global estruturado sobre o estado do mundo e as perspectivas futuras (tipo think tank) e de orientação política contrária à do FEM tão pouco se pode dizer que o FSM conseguiu ser um contraponto e neste caso isso se deve, em parte, a erros estratégicos que foram cometidos no interior do próprio processo do FSM. Ser contraponto significa ser contra a corrente e, tal como nadar contra a corrente é muito mais difícil do que nadar com a corrente, não seria deesperar que fosse fácil ao FSM coordenar idéias e movimentos na lutacontra a dominação capitalista. Acresce que desde o início, uma das forças do FSM (a diversidade dos movimentos e lutas que acolheu e o espírito de inclusividade com que o fez) foi também uma das suas fraquezas. Tratou-se de uma ambiguidade originária na relação entre movimentos que se opõem ao capitalismo, em geral, e movimentos que se opõem a este capitalismo predador e antirreformista (o neoliberalismo), entre movimentos que acreditam na ideia de progresso da modernidade ocidental e os que a rejeitam, entre movimentos que pensam que o racismo e o sexismo são lutas secundárias e os que se recusam a estabelecer hierarquias abstratas entre as lutas, etc. A formulação de um pensamento global pressupõe um horizonte de futuro, seja ele o “capitalismo humanista” ou anticapitalismo (que, por sua vez, pode designar-se como socialismo ou não), seja ele mais desenvolvimento ou a ideia indígena da solidariedade e da harmonia com a natureza (Sumak Kawsay dos povos andinos),
seja ele um futuro de igualdade ou um futuro de diferenças iguais. Apesar de todas estas diferenças, penso que teria sido possível formular um pensamento estruturado que precisamente as reconhecesse e articulasse. Um certo antiintelectualismo combinado com algum faccionalismo disfarçado de antifaccionalismo juntaram-se para impedir que se organizassem as muitas energias de massa crítica e propositiva existentes no interior do FSM. Desperdiçou-se, assim, muita experiência e muita reflexão. Se, finalmente, se entender por contraponto a criação de uma moldura ou formato geral para formular ideias alternativas ao pensamento dominante e credibilizar ações coletivas que o contradizem na prática, parece-me incontestável que o FSM conseguiu ser um contraponto ao FEM. Basta ter presente o modo como o FSM se multiplicou ao longo da década em centenas de Fóruns regionais, temáticos e locais. Basta ter presente a intensificação das articulações entre movimentos semelhantes em diferentes partes do mundo, como, por exemplo, entre movimentos indígenas ou entre movimentos de mulheres tornados possíveis pelo processo do FSM.

JB: Quais as perspectivas que o senhor vê para o FSM nas suas próximas edições e que deverão ser a linha orientadora a partir do FSM 10?

BSS: Antes de mais nada, não é correto imaginar transformações profundas no curto prazo em resultado da atual crise financeira, econômica, energética e ambiental, apesar de o simples acúmulo das crises ser significativo. Os movimentos e organizações do FSM têm hoje uma experiência social enorme que os faz analisar com alguma reserva todos os anúncios de crises finais do capitalismo. O capitalismo tem uma capacidade enorme de regeneração. Como vimos recentemente, os mais furiosos adeptos do neoliberalismo nem sequer pestanejarampara aceitar a mão do Estado na resolução da crise, o que por vezes envolveu nacionalizações, a palavra maldita dos últimos 30 anos. Por isso, o FSM e todas as novas formas de ativismo global que resultarem delevão aprofundar as suas agendas tendo em mente esse realismo na base do qual podem construir novos radicalismos. O balanço da década do FSM deve ser orientado para o futuro, e não para nos flagelarmos comanálises críticas do passado. Em meu entender, as perspectivas de futuro deveriam alinhar-se pelas seguintes ideias:

1- A mundialização real do FSM.Em retrospecto, o FSM da última década foi, sobretudo, um Fórum Social Latinoamericano. Foi neste continente que a ideia do FSM cativou verdadeiramente a imaginação dos movimentos sociais e se transformou numa fonte autônoma de energia contra a opressão e a dominação. Essa fertilização do inconformismo teve repercussões muito para além do FSM, nos processos políticos que tiveram lugar em muitos países do continente. Em nenhum outro continente temos hoje um conjunto tão vasto de países com governos progressistas e com formas tão intensas de articulação política entre eles apesar das muitas diferenças que os separam. Está a emergir uma consciência continental, mais de um século depois de o grande José Marti a ter preconizado como Nuestra América. É uma consciência difusa, mas tem como ideias centrais a recusa militante da ideia imperial da América Latina como quintal dos EUA e a reivindicação de formas de cooperação econômica e política que se pautam por princípios de solidariedadee reciprocidade, alternativos aos que subjazem aos tratados de livre-comércio. E esta consciência, longe de ser um monopólio de estadistas, está hoje presente nas fortes articulações continentais entre movimentos sociais e começa a germinar nas identidades dos cidadãos do continente. É disso sinal a criação da cidadania latino-americana proposta pela nova Constituição do Equador. Nada disto ocorre em outros continentes e é mesmo problemático se a unidade “continente” vale da mesma maneira em todos os casos. Na África há um forte movimento de integração regional, mas a sua orientação política é, por enquanto, uma incógnita. Acresce que os movimentos sociais e as organizações africanas estão muito distantes deste processo. É, por isso, de salientar a importância de o próximo FSM se realizar em Dakar. Apesar de algumas das melhores reflexões sobre a globalização alternativa ser originária da Ásia, o processo do FSM só teve alguma implantação na Índia e mesmo aí teve dificuldade em autonomizar-se em relação às identidades partidárias. A Europa, hoje dominada por governos conservadores, tem um forte projeto de integração regional que mais e mais se afasta dos cidadãos e das organizações sociais. Esta derivação autoritária contribuiu para a marginalização da Europa na recente Conferência da ONU sobre a mudança climática realizada em Copenhague em dezembro passado. Finalmente, os movimentos e organizações do subcontinente da América do Norte nunca souberam ou quiseram trazer o FSM para casa apesar de contribuírem para o processo do FSM noutros espaços. O primeiro FSM nos Estados Unidos só se realizou em 2007 e é grande a expectativa a respeito do próximo que se realizará de 22 a 26 de junho deste ano em Detroit. Para ser sustentável na década que agora entra, o FSM tem de fazer um esforço enorme – através dos movimentos e organizações que já o integram - no sentido de densificar a sua presença nos diferentes continentes. A África, a Ásia e a Europa parecem-me ser as grandes prioridades. Não vai serfácil, não só porque o FSM reflete internamente as desigualdades sociais do mundo (as desigualdades entre as capacidades organizativas contra a opressão e a dominação das diferentes regiões do mundo), como também porque o imperialismo encontrou no pretexto da luta contra o terrorismo novas armas para impedir a organização, a privacidade, a mobilização e a mobilidade dos ativistas militantes contra a injustiça social e por um outro mundo possível.

2- Democracia interna e deliberação política. Algumas vozes críticas do processo do FSM têm levantado freqüentemente a questão da democracia interna da estrutura organizativa do FSM.
Francamente, nunca pensei que esse fosse um problema sério, tendo em vista o insanável problema da representatividade dos movimentos e organizações que decidiram integrar o FSM. Aliás, ao longo dos anos fui observando as muitas iniciativas tomadas, sobretudo ao nível do Conselho Internacional, para acolher as propostas no sentido de aumentar a democraticidade interna. Por isso, quando falo de democracia interna e deliberação política, tenho em mente outro problema: o não se aproveitar a rede dos movimentos e organizações que integram o FSM e as reuniões mundiais, regionais, nacionais e locais para fazer exercícios de democracia participativa, referendária, consultiva ou deliberativa, sobre grandes questões que afetam o mundo, sobre propostas de reflexão e de ação que mobilizam os movimentos e sobre as quais há diferentes opiniões. Confesso que, sem grande sucesso, tenho vindo a propor tais exercícios como embriões de processos deliberativos que amanhã podem estar na origem de ações coletivas de âmbito global que, pela sua envergadura e pelo
seu impacto, tornem o FSM mais relevante para os próprios movimentos e organizações que o integram e dêem aos militantes um novo sentido e uma nova utilidade à pertença ao FSM. Penso que um dos desafios do FSM vai ser o de dar mais conteúdo político à sua existência e este objetivo, na lógica do próprio FSM, só pode realizar-se por formas de democracia radical, representativa pela qualidade do envolvimento, e não pela quantidade das bases estatísticas, que abranja os militantes de base, e não apenas as cúpulas ou lideranças que freqüentam as reuniões do FSM. Será também uma forma de dar mais espaço político a movimentos e organizações assentes na militância de base em detrimento das organizações sem membros, por vezes bem financiadas, com agendas pouco transparentes e com prestações de contas orientadas para os doadores/ financiadores, e não para os públicos que dizem servir. Esse novo conteúdo político deverá abranger duas áreas principais que menciono a seguir.

3- Pensamento solidamente crítico e propositivo. O FSM não é sustentável na década que agora se inicia se a sua voz, mesmo que plural, não se ouvir sobre os problemas que afligem o mundo. Essa voz tem de se ouvir antes de mais junto dos militantes dos movimentos e organizações que o integram, mas deve ouvir-se também junto da opinião pública.Este desafio desdobra-se em dois.Por um lado, vai ser necessário imaginar redes de movimentos e organizações com suficiente massa crítica para dar resposta a questões e temas concretos cuja análise seja recomendada pelos mecanismos de democracia participativa que referi. Não
se compreende, por exemplo, que o FSM não tenha tido uma voz (ou mesmo umconjunto de vozes estruturadas) sobre a reforma da ONU, sobre a mudança climáticaou sobre a guerra infinita contra o terrorismo que amanhã será uma guerra contra todos nós que nos inconformamos ativamente ante as injustiças instaladas. O segundo desafio é o da comunicação e informação num contexto em que as grandes mídias se tornaram em todo o
mundo o grande partido da oposição conservadora e, muitas vezes, antidemocrática. Promover as mídias alternativas e densificar as redes entre elas vai ser uma das grandes prioridades da década.

4- Ações coletivas e novas internacionais. Os mesmos processos de democracia participativa vão ter de ser utilizados para decidir tipos de ação coletiva que, à falta de melhor nome, poderíamos chamar de guerrilha pacífica, sincronizada e multissituada tendo o mundo como o horizonte das formas locais e nacionais e regionais de intervenção. Em seu conjunto, tal estratégia visará a tornar o mundo menos confortável para a dominação capitalista, colonial, exista e antiambiental. Mas como já aconteceu na década passada, a relevância do FSM vai se revelar em iniciativas que não têm diretamente a ver com o FSM, mas que seriam impensáveis ou impossíveis sem a existência dele. Em tempos recentes, têm surgido várias propostas no sentido de tornar o movimento da globalização alternativa mais afirmativo e vinculativo em termos de iniciativas mundiais. Algumas delas confinam-se aos movimentos e organizações sociais. É o caso da proposta recentemente feita pelo vice-presidente da Bolívia, o grande intelectual-ativistagovernante Álvaro Garcia Liñera, de se criar uma Internacional dos MovimentosSociais. Outras propostas visam a superar a divisão entre movimentos e partidos progressistas. É o caso da proposta, também recente, do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, de se criar a Quinta Internacional, congregando os partidos de esquerda em nível mundial.

JB: Uma frase sobre a volta do FSM à sua origem, Porto Alegre.

BSS: Agora que estamos entrando em período eleitoral na região, oxalá o FSM devolva a Porto Alegre e ao Rio Grande do Sul a esperança progressista que a cidade e o estado deram ao mundo nos primeiros anos da década passada. O espírito de Porto Alegre não poderá continuar a irradiar no mundo se tiver desertado de Porto Alegre.

Um comentário:

Francisco disse...

Dá-lhe Indo na Couve!
Voltando à atividade!

Abração!

CHICO

napraxis.blogspot.com